Leitura compartilhada do encontro do dia 27.03.12
Felicidade
clandestina
Clarice Lispector
Ela
era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas.
Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com
balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de
ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para
aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos
um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife
mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com
letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e
"saudade". Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura
vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que
éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu
nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe
emprestados os livros que ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de
começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me
que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso,
meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E
completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no
dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na
própria esperança da alegria: eu nao vivia, eu nadava devagar num mar suave, as
ondas me levavam e me traziam. No dia seguinte fui à sua casa, literalmente
correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou
entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a
outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí
devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua
a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.
Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias
seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me
esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. Mas não
ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era
tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um
sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não
estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais
tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte"com ela ia se
repetir com meu coração batendo. E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela
sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo
grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às
vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me
fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. Quanto tempo? Eu ia
diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. As vezes ela dizia: pois o
livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o
emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras
se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à
porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe.
Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de
sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa,
entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais
estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu.
Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca
saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior para essa mulher não era a
descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que
tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha
desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de
Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a
filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica
com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o
livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande
ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu? Eu
estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada.
Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei
que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito.
Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente,
meu coração pensativo. Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o
tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas
linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais
indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro,
achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para
aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser
clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no
ar... Havia orgulho e pudor em
mim. Eu era uma rainha delicada. As vezes sentava-me na rede,
balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não
era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
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